Termo firmado com quilombolas da reserva Trombetas é marco socioambiental histórico
Existe um movimento em curso, silencioso e discreto, mas capaz de resolver conflitos históricos e de redefinir os conceitos de preservação e de conservação [1] nas un🐬ida🌱des de conservação federais de proteção integral.
E diz respeito ao maior papel dado por lei ao ICMBio: o de gestor socioambiental de espaços territoriais especialmente protegidos. Cuida-se da implementação efetiva do conceito de dupla afetação (ou dupla proteção) entre povos e comunidades tradicionais e as UCs de proteção integral. Concretamente, a dupla afetação materializou-se por meio do Termo de Compromisso nº 02/2022, celebrado entre o ICMBio e a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Alto Trombetas II (ACRQAT), com o objetivo de reconhecer direitos e estabelecer acordo de convivência na área de sobreposição entre a Reserva Biológica [2] Trombetas e o Território Quilombola Alto Trombetas II, com vistas a compatibilização entre as atividades praticadas pela comunidade quilombola e os objetivos da UC [3].
O conflito entre povos e comunidades tradicionais [4] e a proteção especial a UCs de proteção integral reside no fato de que o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc) proibiu usos diretos [5] em tais espaços.
Ao contrário dos proprietários privados e posseiros que devem ceder espaço à tutela ambiental [6], resolvendo-se o conflito na justa indenização mediante desapropriação a quem tem domínio ou mediante indenização de benfeitorias a quem tem posse de boa-fé, os povos e comunidades tradicionais mereceram uma tutela especial do constituinte não apenas de sua posse ou de sua propriedade, mas de seus modos de vida e sua pertença a um território. Logo, a solução dada aos proprietários privados comuns não lhes seria aplicável, a não ser que consintam expressamente [7] em serem indenizados ou reassentados.
Impasse e possíveis soluções
Como era de se esperar, os povos e comunidades tradicionais não têm estado dispostos a serem simplesmente indenizados ou reassentados [8]. Querem o gozo da terra de seus antepassados e da qual se reconhecem como parte integrante. Assim, formou-se um impasse para o qual o Snuc não trouxe uma solução expressa, o que decorreria da a♐parente incompatibilidade entre normas previstas no Texto Constitucional: espaços territoriais especialmente protegidoꦫs de um lado (artigo 225, § 1º, III) e povos e comunidades tradicionais de outro (artigos 216, 217 e 231, e o artigo68 do ADCT).
Apesar de a discussão gravitar em torno de conceitos técnico-ambientais (proteção, conservação, diversidade biológica, uso sustentável, entre outros), no plano normativo existe um conflito aparente entre normas constitucionais, de forma que o problema precisa ser resolvido no plano da hermenêutica constitucional. Ou seja, a solução do impasse é uma solução jurídica e não técnica [9].
Histórico e precedentes jurídicos
Como o ICMBio vinha então procedendo ao longo dos anos para gerir o conflito? Estavam sendo firmados termos de compromisso [10] por prazo certo, mas que vinham sendo constantemente prorrogados, a despeito de previsão legal para tanto [11]. Ao invés de resol💜ver a questão e, assim, dar uma resposta c🐲oncreta aos povos e comunidades tradicionais, o órgão gestor das UCs colocava tais grupos em situação de insegurança jurídica e sem o pleno gozo dos usos históricos a que seus antepassados sempre fruíram. Era preciso, portanto, fazer algo para garantir os direitos dos povos e comunidades tradicionais.
O presente artigo visa demonstrar o histórico e os precedentes jurídicos emitidos pela Procuradoria Federal Especializada junto ao ICMBio que permitiram uma solução. A primeira oposição à prática até então vigente ocorreu na análise do termo de compromisso celebrado com os pescadores artesanais e tradicionais de sardinha para disciplinar a atividade no Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, UC de proteção integral. É que se apontava a fragilidade de usar o termo de compromisso, com caráter precário e com usos limitados, sem que houvesse uma resposta estatal definitiva [12].
Em um segundo momento, por ocasião da renovação do Termo de Compromisso nº 120/2011, celebrado entre ICMBio e a Associação dos Moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo de Cachoeira Porteira (Amocreq/CPT), a PFe/ICMBio foi mais incisiva quanto à fragilidade da forma como o tema estava sendo tratado, uma vez que os povos e comunidades tradicionais (e seus usos ancestrais) deveriam ser tratados, inclusive, no plano de manejo da UC.Havia já nesse momento uma provocação clara e contundente para que o Estado deixasse de invisibilizar povos e comunidades tradicionais, que tinham direito à identidade e ao território. Afora essa provocação à administração pública, foi determinada a elaboração de um estudo jurídico específico e completo sobre o tema [13].
Como resultado desse estudo, foi emitido o Parecer nº 00175/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/PGF/AGU [14] aprovado por meio Despacho n. 00635/2021/Gabinete/PFE-ICMBIO/PGF/AGU. O opinativo jurídico propôs uma releitura da Lei nº 9.985/2000, especialmente nas regras relativas ao artigo 42, passando por um filtro constitucion🦩al e convencional e interpretação sistemática em relação ao ordenamento jurídico vigente, no sentido de se considerar a possibilidade de manutenção perman✤ente das populações tradicionais inerentes à diversidade biocultural afeta à UC, que precisam e dependem desse espaço necessário e inamovível para a sua identidade ser afirmada.
A partir dessa verdadeira mudança de paradigma, a PFe sugeriu que a Administração deveria buscar a resolução dos conflitos gerados pela implantação de UCs de proteção integral em territórios tradicionais, considerando algumas possibilidades (1) a reavaliação dos termos de compromisso até então celebrados com populações tradicionais inerentes, sob a lógica da transitoriedade (regime de transição), sem que se frustre a confiança legítima depositada nos atos administrativos já praticados; e (2) a conformação no plano de manejo, em zoneamento específico, da gestão e do manejo dos recursos naturais do espaço territorial em regime de dupla afetação. Avançando nas discussões internas, a PFe/ICMBio se debruçou sobre a dupla afetação entre quilombos e UCs de proteção integral, dando mais especificidade ainda à tese geral lançada no parecer citado. Esse avanço foi materializado por meio do Parecer nº 00115/2021/COMAF/PFE-ICMBIO/PGF/AGU, que concluiu que a Concessão de Direito Real de Uso – CDRU prevista no artigo 7º do Decreto-lei n. 271/1967, com redação atual conferida pela Lei nº 11.481/2007, possui idêntico conteúdo jurídico do título de propriedade quilombola assegurado pelo artigo 68 do ADCT da Constituição e disciplinado pelo artigo 17 do Decreto nº 4.887/2003, o qual transfere a propriedade indivisível e inegociável do território reconhecido às comunidades remanescentes dos quilombos. Assim, a CDRU configura instrumento jurídico adequado à titulação definitiva dos territórios quilombolas Alto Trombetas 1 e Alto Trombetas 2, reconhecidos e declarados de forma sobreposta à Rebio Rio Trombetas e à Floresta Nacional de Saracá-Taquera, formalizando e disciplinando a dupla afetação dos interesses ambientais e territoriais sobre a área. Com isso, assegurou-se sua especial proteção em prol do meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como dos direitos dos remanescentes quilombolas ao território por eles tradicionalmente utilizados para a garantida da reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade. O parecer também consignou que enquanto não for juridicamente possível materializar a CDRU, por alguma razão objetiva alheia à vontade das comunidades quilombolas ou do ICMBio, a exemplo do imóvel a ser concedido não ter sido ainda formalmente incorporado ao patrimônio da autarquia, é juridicamente possível a celebração de termos de compromisso por prazo indeterminado até que se possa celebrar o CDRU como instrumento definitivo da titulação.Instrumento arrojado
Nesse cenário de expedientes jurídicos, estava arado o campo no qual o ICMBio poderia, concretamente, implementar a dupla afetação. E tal materialização ocorreu no já mencionado Termo de Compromisso nº 02/2022, entre o ICMBio e a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Alto Trombetas II (ACRQAT). Fica evidente que o meio ambiente natural e o cultural poderiam e deveri🔜am se𝄹r tratados de forma integrada e harmônica em tais situações.
Desde a publicação do Snuc não se via um instrumento tão arrojado e capaz de dar concretude à CDB no que se refere à tutela da sociodiversidade como o Termo de Compromisso nº 02/2022. Este instrumento materializou o respeito aos usos diretos históricos das comunidades quilombolas, a exemplo do manejo de quelônios, da caça para subsistência e do respeito aos cultos e locais sagrados dentro da UC. Os quilombolas que vivem na UC são também os responsáveis por manterem a integridade da diversidade biológica lá existente. Pelo termo firmado, os quilombolas não mais precisarão sair da UC, consagrando um meio efetivo de lhes viabilizar a existência em seus modos centenários. Não se pode esquecer que a Constituição de 1988 inseriu o capítulo sobre o meio ambiente no título dos direitos sociais, de forma que a proteção ecológica não deve se dar à revelia das populações que por tanto tempo habitaram e ajudaram a manter a qualidade ambiental do território. A expectativa é que tal composição administrativa possa pôr fim a inúmeros processos judiciais e questionamentos administrativos, pacificando um tema tão delicado e sensível, seja na perspectiva da proteção ambiental quanto da efetividade de direitos humanos. Deve nortear, aliás, não apenas a atuação do ICMBio, mas igualmente dos demais entes políticos (estados, Distrito Federal e municípios) nos quais há, igualmente, sobreposição de UCs e povos e comunidades tradicionais. Daí se considerar que as balizas jurídicas firmadas e prévias à celebração do Termo de Compromisso nº 02/2022 constituem o passo mais ousado dado na efetividade dos direitos e interesses dos povos e comunidades tradicionais dentro das áreas ambientalmente protegidas. Isso significa que esse termo de compromisso de usos múltiplos é um marco jurídico histórico para efetividade de direitos socioambientais, podendo ser firmado com qualquer povo ou comunidade tradicional.[1] Os conceitos de conservação da natureza e de preservação en🐻contram-se no art. 2🌊º, II e V, do SNUC, respectivamente.
[2] O art. 10 do Snuc dispõe que a reserva biológica tem como objetivo a preservação integral da biota e demais atributos naturais existentes em seus limit🧔es, sem i🌱nterferência humana direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos naturais.
[3] 💎A discussão foi travada no Processo Administrativo nº 02174.000006/2014-24.
[4] De acordo com o art. 3º, I do Decreto 6.040/2007, povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, ut♋ilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
[5] O Snuc mconceitua, no art. 2º, VI proteção integral como a manutenção d🥂os ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos seus atributos naturais.
[6] ARE 999951 AgR, Relator(a): MARCO AURÉLIO, 1ª Turma, julgado em 01-08-2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-225 DIVULG 02-10-2017 PUBLI🐼C 03-10-2017, que reafirma tese plenária fixada no MS 25.284, relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 17-06-2010, DJe-149 DIVULG 12-08-2010 PUBLIC 13-08-2010 EM🐭ENT VOL-02410-02 PP-00298.
[7] Art. 42 do Snuc.
[8] A 𒈔noção de pertença e de território foi muito bem explorada na ADI 3239, relator(a): CEZAR PELUSO, Relator(a) p/ Acórdão: ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 08-02-2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 3🍒1-01-2019 PUBLIC 01-02-2019
[9] Confirma tal entendimento a tese firmada pelo STF no PET 388, conhecido como Raposa do Sol, nꦿo qual se firmou a tese de que seria possível a tripla afetação da área (terra indígena, UC e zona de fronteira)
[10] Ver CAPÍTUL𒈔O IX DO REASSENTAMENTO DAS POPULAÇÕES TRADICIONAIS no Decreto n. 4.340/2002.
[11] A IN 26/2012/ICMBio traz previsão de prorrogação, 🌸mas esta não tem lastro nem no Decreto 4.340/2002, tampouco no SNUC.
[12] A ressalva deu-se pela então chefia da PFe ICMBio por meio do Despacho nº 00676/2020/Gabinete/PFE-ICMBIO/PGF/AGU exarado no processo administrativo de n. 02070.009924/2019-91.
[13] Foi designado o procurador federal Frederico Rios para elaboração de estudo jurídico espeꦍcífico sobre o tema.
[14] O Parecer nº 00175/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/PGF/AGU foi um marco porque: a) não havia tese jurídica anterior defendendo que os planos de manejo poderiam servir para acomodar as realidades de populações tradicionais; b) antes do Parecer n. 00175/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/PGF/AGU não havia tese jurídica que justificasse a celebração de instrumentos sem prazo com as populações tradicionais; c) o Parecer n. 00175/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/PGF/AGU rompeu co❀m a posição da PFe de validar sucessivas prorrogações de TCs por compreender que tal prática violava a lei; d) o Parecern. 00175/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/PGF/AGU foi a (uma das) manifestação pioneira da AGU a exercer o controle de convencionalidade, ou seja, deixar de aplicar lei ou aplicá-la em parte em razão de conflito com convenção subscrita pelo Brasil.
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