Opinião

Declínio e queda da lista tríplice para procurador-geral da República

Autor

  • Renan Apolônio
    é advogado formado pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE) especialista em Direito Constitucional em Direito Público e em Direitos Humanos vice-presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB Olinda membro da J. Reuben Clark Law Society-Brasil atuando como membro da diretoria nacional e da regional Nordeste da instituição.
27 de abril de 2024, 13h20

Em maio de 2016 surgiu certa controvérsia sobre as regras de nomeação à Procuradoria Geral da República, a partir de uma entrevista concedida por Alexandre de Moraes, então ministro da Justiça, à Folha de S.Paulo.

Na entrevista, o então ministro foi questionado se Michel Temer manteria a “tradição” de indicar à PGR o procurador mais votado na lista tríplice elaborada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Em resposta, ele afirmou que ainda não havia discutido o tema com o presidente, mas que se cumpriria a Constituição, que não prevê a nomeação mediante lista, e afirmou que o que garante a autonomia do Ministério Público não é a regra de nomeação, mas sim a proibição de destituição discricionária do PGR pelo presidente da República (Bergamo, 2016). No entanto, não se pode negar que as regras de indicação de um novo PGR também são determinantes nos desenhos institucionais do MP. Tanto assim que as declarações do ministro Moraes causaram grande repercussão no meio jurídico. Esse foi o início do declínio da utilização das listas tríplices para a escolha do procurador-geral da República.

Como surgiu a lista tríplice da ANPR

No período de transição democrática, foram discutidos vários modelos para a nomeação do PGR pelos próprios integrantes do Ministério Público (federal e estaduais). Apesar de ter havido uma proposta de nomeação mediante lista tríplice eleita entre os membros da carreira (como ocorre nos Ministérios Públicos dos estados), prevaleceu a proposta de nomeação de um procurador de carreira, para um mandato de dois anos, não podendo ser destituído, salvo com aprovação do Senado. Esse modelo foi o adotado pela Constituição de 1988, no artigo 128, § 1º e § 2º. Além disso, a Constituição criou a Advocacia Geral da União, que passou a representar o poder público (o que antes também era feito pelo Ministério Público), permitindo que o MP se concentrasse em funções específicas, entre as quais a persecução criminal e, consequentemente, o combate à corrupção. Aristides Junqueira foi o primeiro nomeado à PGR após 1988. Indicado por José Sarney em 1989, foi reconduzido ao cargo em 1991 por Fernando Collor, e em 1993 por Itamar Franco.

Enquanto PGR, Aristides Junqueira protagonizou fato inédito: denunciou o presidente Collor por corrupção passiva e formação de quadrilha. Essa demonstração de verdadeira independência por parte do chefe do MPF foi consequência de a escolha ter de recair em membro da carreira e de não ser o procurador-geral demissível ad nutum, como afirma Celso Ribeiro Bastos (1997, p. 69).

Situação diferente se verificou durante os dois mandatos de Fernando Henrique na Presidência da República, que por quatro vezes nomeou Geraldo Brindeiro para o cargo. Brindeiro foi apelidado de “engavetador-geral da República”, porque, à frente da PGR, não promoveu nenhuma acusação contra o presidente e seus aliados (RAMALHO e MODZELESKI, 2017). Nesse contexto, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) tomou a iniciativa de realizar votação entre seus associados em 2001 para elaborar uma lista tríplice, que foi apresentada ao presidente Fernando Henrique, que a ignorou e novamente indicou Brindeiro. Em 2003, já sob a presidência de Lula, houve nova votação, e o presidente decidiu indicar o procurador mais votado. O presidente Lula e a presidente Dilma Rousseff adotaram o mesmo procedimento sempre que tiveram de nomear alguém para a PGR.

Leobark/Comunicação/MPF
Sede da Procuradoria-Geral da República, sede da PGR

Os procuradores nomeados nas gestões dos presidente petistas (Cláudio Lemos Fonteles, Antônio Barros e Silva, Roberto Gurgel e Rodrigo Janot) eram parte de um grupo que se opunha à liderança de Geraldo Brindeiro e defendia a adoção de uma lista tríplice eleita (SHALDERS, 2017). Esse período foi o de maior atividade no combate à corrupção na história do Brasil. A PGR teve uma atuação mais independente e promoveu inúmeras denúncias de corrupção, sendo o mensalão a mais significativa dessas ações (RAMALHO e MODZELESKI, 2017). Como reflexo desse empoderamento da PGR, e da ênfase dada ao combate à corrupção, todo o MPF viu-se fortalecido, e a operação “lava jato” nada mais é que uma das consequências desse ativismo do Ministério Público. No governo de Michel Temer, a ANPR reforçou seu lobby pela indicação de membro da lista, reagindo às citadas declarações de Alexandre de Moraes, e realizou nova votação. Temer, ao apreciar a lista, optou por indicar Raquel Dodge, segunda colocada.

Dodge era opositora do grupo “tuiuiú”, mas nunca apoiou Brindeiro, de modo que quebrou a hegemonia dos tuiuiús sem retornar ao padrão anterior, de alinhamento político entre a PGR e a Presidência (SHALDER༒S, 2017), tanto que🔯 ofereceu denúncias contra Temer, mesmo poucos dias antes de encerrar-se o período presidencial (CONJUR, 2018).

Papel institucional da lista tríplice no combate à corrupção

É importante destacar que se um procurador-geral denunciou por corrupção o presidente que o nomeara, isso só foi possível graças à norma constitucional de 1988, que não previa a lista tríplice. Contudo, a longo prazo, a norma formal mostrou não ser suficiente para impedir o alinhamento político entre o presidente e o procurador-geral. Essa distância institucional somente voltou a ser real quando os presidentes passaram a escolher procuradores a partir de lista tríplice elaborada pela associação de classe. As nomeações passaram a ter impessoalidade, e a PGR passou a ser efetiva no combate à corrupção. A regra informal de nomeação à PGR mediante lista tríplice não viola a norma formal da Constituição. Ademais, depois que a regra constitucional mostrou-se ineficaz para assegurar por si só seu objetivo, a prática contribuiu significativamente para a autonomia e independência do MPF. Isso não significa que a nomeação para a PGR precisa ser necessariamente feita através de uma lista tríplice. Esse mecanismo foi um arranjo institucional que funcionou dentro de um contexto político-institucional específico, num momento histórico específico. Mas foi uma boa experiência.

Declínio

A mudança de direção que iniciou o declínio desse modelo aconteceu no primeiro ano da gestão Bolsonaro na Presidência da República, e começou por dentro do próprio Ministério Público. Por um lado, a então procuradora-geral, Raquel Dodge, se negou a concorrer a uma nova indicação da ANPR por discordar das regras de votação adotadas (SHALDERS, 2019). Até esse momento apenas os subprocuradores gerais podiam ser candidatos (apesar de a Constituição admitir qualquer integrante da carreira). Além disso, os procuradores já aposentados podiam votar nessa consulta, enquanto procuradores ativos, mas não filiados, não podem votar. Em 2019, os aposentados foram excluídos da lista de votantes, e os procuradores da República e procuradores regionais passaram a concorrer à lista da ANPR. Entretanto, Raquel Dodge manteve sua recusa em concorrer à indicação da ANPR, e concorreu por conta própria a mais uma indicação à PGR. O mesmo fez o subprocurador Augusto Aras. Diferentemente de Dodge, Aras não discordava apenas das regras de votação da ANPR, mas da própria escolha mediante uma votação por associação (SHALDERS, 2019). Um segundo golpe à lista tríplice veio dos servidores do MPF. A Associação dos Servidores do Ministério Público Federal (ASMPF) realizou uma consulta a seus associados, para elaborar, não uma lista tríplice, mas uma lista quíntupla, chamada “Consulta #top5PGR”, em que os próprios servidores associados fizeram as indicações e a votação (SCHUQUEL, 2019). Durante o processo de escolha pelos servidores, oito candidatos visitaram a ASMPF, entre eles Augusto Aras, que resultou ser um dos cinco indicados pela Associação (SCHUQUEL, 2019). A combinação desses fatores (a discussão sobre a legitimidade da votação da ANPR, os lobbies particulares de Dodge e de Aras, a consulta da ASMPF) prepararam o caminho para que Jair Bolsonaro nomeasse alguém sem atender à lista tríplice da ANPR, algo que ele já desejava fazer. A recondução de Augusto Aras, em 2021, mais uma vez fora da lista tríplice, enfraqueceu ainda mais esse modelo de escolha.

Queda

Historiadores costumam alertar para o fato de que a história não é linear e progressiva, acontecendo reviravoltas e contradições ao longo dos processos históricos. No caso da lista tríplice da ANPR, é curioso que o próprio presidente da República que inaugurou a “tradição” da lista tríplice foi quem deu o golpe fatal, causando a derrocada desse modelo político de escolha. Em seu terceiro mandato, o presidente Lula alcançou um recorde na demora em indicar ao Senado quem deveria ser o novo ocupante da Procuradoria Geral da República. Entre o fim do mandato de Augusto Aras (26/9/2023) e a indicação de Paulo Gonet (27/11/2023) transcorreram 62 dias, e somente a partir daí o indicado ainda poderia ser sabatinado e aprovado no Senado. O recorde anterior era de Dilma Rousseff, que demorou quatro dias para indicar Rodrigo Janot em 2013.

Essa demora, segundo apurou o site Poder360, se deu por uma acomodação do governo com a ausência de um procurador-geral, preferindo deixar a dra. Elizeta Ramos como interina no cargo, que poderia ser substituída a qualquer momento através da nomeação de um procurador-geral efetivo, o que de fato aconteceu quando a procuradora interina nomeou procuradores ligados à “lava jato” para cargos internos do MPF (BOECHAT e MAIA, 2023).

Segundo noticiado por canais de comunicação, a indicação de Paulo Gonet Branco foi feita ignorando a lista de indicados pela ANPR pois o presidente Lula não quis deixar nas mãos dos demais procuradores a escolha do procurador-geral, para evitar o surgimento de uma nova “lava jato” (SCHREIBER, 2023).

Reflexão final

Em sua primeira edição, a consulta da ANPR a seus filiados foi ignorada pelo presidente Fernando Henrique e voltou a ser ignorada pelo presidente Jair Bolsonaro nas duas oportunidades que ele teve para nomear o titular da PGR. O fato de o presidente Lula, que iniciou a “tradição” da lista tríplice, seguir o comportamento de Fernando Henrique e Bolsonaro, de quem foi opositor, é um fato político que pode sufocar de vez a “tradição” de o procurador-geral da República ser nomeado entre os integrantes da lista tríplice da PGR. Por fim, lembrando que a escolha do procurador-geral mediante lista tríplice possibilitou uma persecução criminal contra casos de corrupção como nunca antes visto, o fato de que o atual presidente da República fez a escolha com o objetivo de afrouxar a persecução criminal realizada pelo MPF (ressuscitando o desprestígio de Lula pelos procuradores concursados, que seriam menos honestos que os políticos condenados, segundo o petista) sinaliza para a queda da tradição da Lista Tríplice. Como dito anteriormente, o fato de haver nomeação mediante lista tríplice não garante o combate à corrupção. Na verdade, nada pode garantir isso. Mas foi um arranjo institucional que permitiu a devida separação de poderes, e que parece fazer falta. À democracia, ao combate ao crime e à corrupção, só resta esperar que o atual procurador-geral da República, bem como todos os demais membros do MPF, queiram ser honestos e independentes, seguindo os passos do mencionado e heroico Aristides Junqueira.  

Referências bibliográficas

BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil promulgada em 1988. São Paulo: Saraiva, 1997.

BERGAMO, Mônica. Nenhum direito é absoluto, e país precisa funcionar, diz ministro da Justiça. Folha de S.Paulo [online]. São Paulo, 16 de maio de 2016.💎 Poꦗder. Disponível em:

BOECHAT, Gabriela. MAIA, Mateus. Lula bate recorde em demora para indicar PGR. Poder360. Brasíli﷽a, 13 de novembro de 20ꦜ23. Disponível em:

ConJur. PGR denuncia Temer por corrupção na renovação de concessões nos portos. 19 de dezembro de 2018. Disponível em: //royalcasino88.top/2018-💞dez-19/pgr-denuncia-temer-corrupcao-decreto-portos

RAMALHO, Renan. MODZELESKI, Alessandra. Janot teve seis antecessores na PGR desde 1988; saiba quem são. 17 de setembro de 2017. Opinião. G1.

SCHUQUEL, Thayná. Escolhido para PGR integra lista #Top5 feita por servidores do MPF. Metrópolis. 05 de 🥀setembro de 2019. Disponível em:

SCHREIBER, Mariana. Investigações sobre Bolsonaro e militares: as ‘bombas’ que podem ser herdadas por Paulo Gonet, PGR indicado por Lula. BBC Brasil. 27 d🌟e novembro de 20ꦗ23. Disponível em:

SHALDERS, André. De onde vem a rivalidade entre Raquel Dodge e Rodrigo Janot?. BBC Brasil. 20 de set🍸embro 🅘de 2017. Disponível em:

SHALDERS, André. Saiba quem são os nomes na lista tríplice para procurador-geral da República – e quem corre por fora.❀ BBC Brasil. 18 de junho de 2019. Disponível em:

 

Autores

  • é advogado, formado pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), especialista em Direito Constitucional, em Direito Público e em Direitos Humanos, vice-presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB Olinda, membro da J. Reuben Clark Law Society-Brasil, atuando como membro da diretoria nacional e da regional Nordeste da instituição.

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