É preciso repensar o tamanho da Justiça do Trabalho, afirma Gilmar
O ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal, defende uma ideia controversa: nos próximos dez anos, será necessário discutir o tamanho da Justiça do Trabalho, levando em conta a possibilidade de parte das ações que diꩲscutem as novas relações de trabalho passar a ser de atribuição da Justiça comum.
“Tenho a visão de que a Justiça do Trabalho vai continuar sendo importante no Brasil, considerando as nossas assimetrias regionais. Mas talvez ela esteja superdimensionada. Já tivemos debates sobre se acidente de trabalho ficaria na Justiça do Trabalho ou na Justiça comum, por exemplo. É questão de ajuste e em pouco tempo isso se fará”, afirmou o magistrado em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico e ao Anuário da Justiça Brasil 2024, que se𒆙rá lançado em maio no Supremo Tribunal Federal.
Essa declaração chega em um momento de royal cassino:crescente tensão entre o Supremo e o Tribunal Superior do Trabalho, por causa de decisões sobre o vínculo empregatício de motoristas e entregadores com plataformas como Uber e IFood. O STF entende que não há vínculo, enquanto a Justiça do Trabalho muitas vezes decide em sentido oposto. Por enquanto, as decisões estão sendo reformadas por meio de reclamações ao Supremo, que já royal cassino:reconheceu a repercussão geral do tema e po🐓de encerrar a discussão de uma vez por todas.
“A grande pergunta que se fará no futuro é que órgão judicial vai decidir esses conflitos que virão das relações não mais de emprego, mas nas relações de trabalho em geral, como por exemplo o que chamam de uberização. Se isso irá para a Justiça do Trabalho ou para a comum.”Explosão de processos
Na entrevista, o ministro também falou sobre o grande número de ações em curso no país — mais de 80 milhões em 2023, segundo dados do “Justiça em Números”, do Conselho Nacional de Justiça. Apesar desse número gigantesco, Gilmar mantém o otimismo, pois acredita que o Brasil passará por um processo de desjudicialização, que já está em curso, segundo ele. “Nós éramos uma sociedade que não litigava muito. E há uma explosão depois de 1988, o que inicialmente fala bem do sistema e da busca de reconhecimento de direitos. Mas passou a ser algo preocupante quando falamos de cerca de cem milhões de processos tramitando. É quase um processo para cada dois habitantes do país.” “Em questões do consumidor, por exemplo, às vezes o sujeito se sente lesado na compra de produtos ou no atendimento. Será que não seria melhor enfatizar a arbitragem pelo Procon? É uma experiência positiva no Brasil. Nos casos de consumidores insatisfeitos, poderia haver uma composição que não precisasse chegar ao Judiciário”, prossegue o decano do STF. O ministro também comentou as decisões sobre a chamada “pauta de costumes”, que por vezes geram reações do Congresso, o uso de inteligência artificial nos tribunais e os julgamentos virtuais, que, segundo Gilmar, vieram para ficar.Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Qual é o papel da Justiça do Trabalho no contexto de flexibilização das relações de emprego?
Gilmar Mendes — Tenho a impressão de que avançamos muito, graças inclusive à reforma trabalhista do governo Michel Temer. Muitas questões foram legisladas ali, como o trabalho temporário. Havia uma questão que se arrastava muito e gerava muita polêmica — e ainda gera alguma no TST —, que é a questão dos terceirizados e o que era para determinadas empresas atividade-fim e atividade-meio. Isso agora está pacificado graças à jurisprudência do Supremo, mas ainda che✱gam muitas reclamações com a afirmação de que o TST está descumprindo decisõ🐓es do Supremo. E agora temos a questão dos aplicativos e dessa flexibilização.
ConJur — A Justiça do Trabalho recebe uma quantidade enorme de processos a cada ano. Como poderia ser feito esse redimensionamento?
Gilmar Mendes — É tudo questão de ajustes. Já tivemos deba꧟tes sobre se acidente de trabalho ficaria na Justiça do Trabalho ou na Justiça comum. É questão de ajuste ౠe em pouco tempo isso se fará. E em pouco tempo vamos viver, e já estamos vivendo, um momento de desjudicialização. Muitos casos, que antes eram causas, estão sendo resolvidos no âmbito cartorial. Como as separações. E esse é um bom fenômeno, porque as pessoas conseguem resolver por autocomposição uma série de questões que antes eram infindáveis. Podemos ter soluções muito mais simples e bem encaminhadas sem a intervenção desse amplo aparato judicial.
Pauta de costumes
ConJur — Como conciliar a necessidade de julgar casos sensíveis da chamada “pauta de costumes”, como a descriminalização do porte de maconha, com a possibilidade de que o Congresso reaja de forma contrária? O efeito backlash (contra-ataque político a uma decisão judicial) está ocorrendo em alguns casos?
Gilmar Mendes — Acho que não. Essa é uma questão talvez de diálogꦏo. No caso das drogas, há uma legislação de 2006, que é uma lei moderna, que tenta despenalizar o uso de drogas. Ela não descriminalizou, mas despenalizou. O que signifi𒅌ca dizer que não se aplicam penas, ou ao menos penas restritivas de liberdade, ao usuário. O que tem acontecido, e essa é a constatação passados quase 20 anos da lei, é que há uma indistinção entre o usuário e o traficante. Nós temos muitos usuários que são presos como traficantes, especialmente as pessoas mais pobres, que vivem em locais de maior risco, maior conflituosidade com a polícia. Então o que se tem de recomendado é que a gente tentasse traçar uma linha e de alguma forma descriminalizar o uso, ainda que você pudesse aplicar sanções administrativas.
ConJur — Mas como o senhor vê a reação do Congresso? Em alguns casos, basta o Supremo começar a julgar um tema e o Legislativo passa a analisar leis sobre o mesmo assunto, quase como se o Supremo estivesse pautando as discussões legislativas.
Gilmar Mendes — É natural que em alguns casos haja reação do Congresso. No que diz respeito ao marco temporal (das terras indígenas), foi o Supremo mesmo que estabeleceu inicialmente, e o Congresso já vinha discutindo alguma disciplina ne🅠ssa temática, como a ne💖cessidade de indenização para as terras que fossem demarcadas. E o Supremo também caminhou um pouco nesse sentido. Podemos dizer que de alguma forma houve um certo diálogo, uma certa compreensão mútua e cooperação. Mas é evidente que são temas difíceis. A demarcação das terras indígenas está prometida desde a Constituição de 1988 e nós temos um déficit nessa questão. E hoje, em muitos locais, nós temos situações de confronto. Revisitamos o tema do marco temporal e o Congresso aprovou uma lei, por uma grande maioria. O presidente vetou e o Congresso derrubou o veto, o que mostra que o tema exige cuidado e reflexão.
ConJur — O senhor falou em um ponto prometido pela Constituição. O texto completou 35 anos com mais de 160 dispositivos sem regulamentação. Isso é normal?
Gilmar Mendes — 🥃Em matéria de direitos, se o legislador não legislar,꧒ a Constituição dá os instrumentos do controle da omissão inconstitucional, o mandado de injunção e a ação direta de omissão.
ConJur — Houve julgamentos em que o Supremo deu decisões contrárias ao STJ, sobre, por exemplo, base de cálculo do ICMS, invasão policial a domicílio e execução de multa penal. De que forma essa zona de penumbra afeta a segurança jurídica e a formação de precedentes?
Gilmar Mendes — Isso ocorre com alguma frequência. Não é tão repetido, mas ocorre com alguma frequência porque o mesmo tema às vezes é apreciado pelo Supremo, em uma perspectiva constitucional, e é também contemplado pelo STJ, em🍨 uma perspectiva infraconstitucional. Surgem, portanto, interpretações diferentes. A despeito do debate que possa se colocar — às vezes a matéria estava pacificada no STJ havia mais tempo e chega ao STF —, ninguém tem dúvida de que o guardião da Constituição é o Supremo, então prevalecerá a posição da corte. O que surge também nesses casos, às vezes, são propostas ✱de modulação de efeitos. Já que o entendimento do STJ ficou em vigor por tanto tempo, por que não deixá-lo ou não valorizá-lo naquela fase em que foi dominante? Mas esses debates ocorrem topicamente.
Plenário Virtual
ConJur — Recentemente, o advogado criminalista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira afirmou que exercer o direito de defesa hoje está mais difícil do que na época da “lava jato”, e que entre as dificuldades está o julgamento no Plenário Virtual e o excesso de decisões monocráticas. O que o senhor pensa dessa crítica? E quais as vantagens e desvantagens do Plenário Virtual?
Gilmar Mendes — Devemos receber com muita atenção e humildade ponderações como essa de um advogado importante e com uma história relevante, como é a do doutor Mariz. Mas tenho a impressão de que o Plenário Virtual — que começou de maneira incipiente, aplicado à questão da 👍repercussão geral, e depois foi expandido, com grande reforço💛 na pandemia — veio para ficar.
ConJur — Há ministros que afirmam que, em alguns casos, o julgamento virtual não exclui o debate, porque há conversas fora do sistema virtual e mais tempo para votar. O senhor concorda?
Gilmar Mendes — Tínhamos no passado, no processo físico, as listas, em que se levava a lista e se concordava. Portanto, não havia discussão. Hoje temos muita discussão no virtual, e muitas vezes divergências. Em🦂 alguns casos, dificuldades até de proclamação, por causa da dispersão dos votos. Então há, sim, muito debate𝓰 e dissensos nesse contexto.
ConJur — O que o senhor espera do uso da inteligência artificial no Judiciário?
Gilmar Mendes — Todos nós estamos animados. Muita coisa já se faz. Aqui há o Victor (inteligência artificial que tem como objetivo separar e classificar peças mais utilizadas e identificar temas de repercussão geral de maior incidência). Outros tribunais também estão trabalhando e há até uma disputa saudável em relação a isso. Também estamos tentando desenvolver técnicas para fazer ementas com o auxílio da inteligência artificial. Acho que 💎ela terá muito uso no que concerne à coerência da jurisprudência. Então, vamos ter bastante progresso com relação a isso.
ConJur — Ainda sobre tecnologia, é urgente que o Brasil faça a regulação das big techs? De que forma as resoluções do TSE servirão para combater abusos e assegurar a liberdade de expressão?
Gilmar Mendes — Nas eleiç🥂ões passadas já tivemos uma boa atuação do TSE, com experimentos que se fizeram na legislação do tribunal para a retirada de conteúdos. Tivemos aquele diálogo tenso entre o TSE e o Telegram, a aplicação de multas e a imposição dos entendimentos sobre a retirada de conteúdos. E agora há uma discussão sobre essa nova regulamentação, que está muito atenta ao problema da inteligência artificial e de como ela será usada. O TSE está disciplinando e exigindo que o material eventualmente divulgado com o uso de inteligência artificial aponte esse uso. Talvez o TSE esteja até avançando no sentido de antecipar os debates que certamente ocorrerão no âmbito do Congresso Nacional. Há uma comissão no Senado trabalhando nesse tema. Vamos ter avanços nos próximos tempos.
Execuções fiscais
ConJur — Há quase 30 milhões de execuções fiscais em andamento no país, e há um esforço para fazer um pente fino nesses processos. A Justiça tem de fazer esse papel de cobradora? A portaria que extingue execuções de pequeno valor pode resolver essa questão?
Gilmar Mendes — Vamos aguardar. O que se está estimulando é a busca de fórmulas novas para tratar, por exemplo, dívidas menores. Para permitir o protesto, mas sem ajuizar a execução. Há problemas porque nós temos assimetria nas relações federativas. Os créditos da União normalmente são maiores, os dos estados, um pouco menores, e os municipais, às vezes, muito pequenos. Então dizer que não vai haver execução fiscal nos valo💫res pequenos pode ter efeitos nas pequenas municipalidades. Tudo isso tem d꧒e ser levado em conta. Mas quanto às execuções, elas ficam na Justiça, mas na maioria dos casos não resultam em cobrança. Então, se houver um incômodo para as pessoas no sentido de elas estarem com seus CPFs bloqueados ou denunciados, talvez isso seja mais efetivo do que as chamadas execuções fiscais. É um pouco essa a aposta que está sendo feita, e talvez venha uma reformulação da própria legislação.
ConJur — Entre os temas que mais chegam ao Judiciário, estão os pedidos de indenização por danos morais e materiais. E, na área criminal, processos envolvendo violência contra a mulher. Qual diagnóstico pode ser feito com base nesses dados?
Gilmar Mendes — Nós éramos uma sociedade que não litigava muito. E há uma explosão depois de 1988, o que in🅠icialmente fala bem do sistema e da busca de reconhecimento de direitos. Mas passou a ser a𓃲lgo preocupante, quando falamos de cerca de cem milhões de processos tramitando. É quase um processo para cada dois habitantes do país. Talvez tenhamos de fazer um escrutínio, um diagnóstico em relação a cada situação.
ConJur — Como os ministros se orientam com relação ao impacto econômico das decisões de relevância, como por exemplo no julgamento da “revisão da vida toda”?
Gilmar Mendes — É algo que certamente devemos considerar. Isso aparece muitoಞ nas questões econômicas e tributárias. Temos também instrumentos de modulação de efeitos. Quando há, por exe🐼mplo, uma causa tributária de repercussão imensa, nós limitamos a retroatividade e dizemos que só daqui para frente não se cobra o tributo. Há muitas construções possíveis e passíveis de serem feitas. O importante é que não deixemos de aplicar o direito. Consideramos o impacto, mas reconhecemos o direito existente.
A “lava jato”
ConJur — O senhor recentemente disse que a discussão em torno da revisão das leniências da “lava jato” ignora o fato de que o Ministério Público não poderia ter firmado acordos. Isso por si só justificaria a revisão?
Gilmar Mendes — Vai depender das arguições que se façam. Mas, de toda a forma, temos várias situações de pessoas que se dizem coagidas, de pessoas que foram absolvidas de pr🌳ocessos criminais e que dizem que o que foi confessado não tinha s💮ubsistência. Tudo isso é passível de revisão. Tem de olhar caso a caso.
ConJur — O senhor também defendeu uma espécie de comissão da verdade sobre a “lava jato”. Como seria isso?
Gilmar Mendes — A todo momento surgem fatos sobre a “lava jato” e ficamos contristados com o que apareceu na chamada “vaza jato”. E depois apareceram fatos ampliados na chamada “operação spoofing”, que aparentemente é um livro mais completo e complexo daquilo que estava na “vaza jato”.
De minha parte, eu já desconfiava das prisões alongadas de Curitiba, que começam a aparecer já por volta de 2015. Mas sem dúvida nenhuma a “vaza jato” vai ter uma boa contribuição, porque documentou aquilo que de alguma forma nós suspeitávamos. Tanto é que, quando votei no caso da suspeição do (ex-juiz e hoje senador Sergio) Moro, no julgamento do presidente Lula, chamei atenção para esse fato: estou julgando com base no que está nos autos. Não preciso da “vaza jato” para considerar Moro suspeito, mas os elementos da “vaza jato” hoje iluminam todo esse contexto e ensinam como não fazer um processo judicial.
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